Flávio Vassoler é escritor. Um grande escritor. Substância, temas essenciais, vida, morte, sentido com muito sentimento, falta de sentido com mais sentimento ainda. Com Flávio não há escritinha burguesa metida a besta, infantil-carente-quero-ser-amado-pseudo-intelectual-pós-moderna não. Flávio escreve que nem gente grande, que nem clássicos. A seguir, pequena criação dele, sem que ele me tenha autorizado a transcrevê-la.
“Um rapaz cético e materialista, cujo culto de si próprio já beirava a morbidez, caminhava errante pelo incerto que por certo o incomodava. Vislumbrou ao longe uma velha casa, portões abertos, convite para o desnudar. Entrou. Tão íngreme e estreita a escada que o levava ao interior que sua sensação era a de ser tragado por uma garganta sequiosa por qualquer transcorrer. Um calafrio o percorreu! Não mais uma perna e, então, um passo, mas, assim que se passa, descortina-se a vida em descompasso. Chegou a um quarto, passou a espirrar sem solução. Sujeira, pó, luz fracamente presente desvendando uma presença: um homem ensimesmado, circunspecto. Um velho barbudo, o oráculo. Sentindo certa animosidade por aquela solidez, o rapaz se achegou o mais que pôde para, então, desafiar aquele homem que a tudo se mostrava impassível.
— Diga-me algo, preciso de respostas!
— Hum…
— Cada coisa ocorre a seu tempo?
— Hum!
— Vamos, responda!
— Calma, rapaz… Cada coisa a seu tempo!
— Ora, velho! O que pode me dizer que eu já não saiba?! Julga-se sábio… Vamos, então, me diga algo, responda ao que perguntei!
— Teme o tempo sem as coisas…
— Ora, como ousa! Não temo nada!
— Há até as coisas apesar do tempo…
— Diz para se ocultar, é sempre assim que procede! Não sabe a resposta! Vamos, admita!
— …
— Velho estúpido!
— Julga pelo que vê, toma de pronto o duvidoso pelo certo…
— Julga-me juiz?
— “Não julgue, e não será julgado. Porque do mesmo modo que julgar, será também julgado e, com a medida com que tiver medido, também você será medido. Por que olha a palha que está no olho do seu irmão e não vê a trave que está no seu próprio? Como ousa dizer a seu irmão: Deixe-me tirar a palha do seu olho, quando tem uma trave no seu próprio? Hipócrita! Tire primeiro a trave do seu próprio olho e assim verá para tirar a palha do olho do seu irmão”.
O rapaz sentiu uma profunda dor com aquelas palavras. Tocaram-no sobremaneira, apresentavam-se como dedos em riste. Não poderia, de forma alguma, suportar aquele cale-se! — Pois estou certo de que não há conjugação nenhuma entre o ser e o tempo. Se houver qualquer coisa, saiba, velho, trata-se no máximo de um paralelismo: nossa vivência material se dá no tempo, pode ser mensurada. Daí a perda total de sentido! Ah, velho tosco! Como rio daqueles que querem dar um sentido para toda essa torpeza! Aliás, existe um sentido para a vida! Como não?! É um sentido unívoco, linear, mesmo. Caminhamos para a morte inexoravelmente, não há solução, não há remédio! Disso estou certo! As questões, se postas, resolvem-se aqui e agora!
— Tem certeza?
— Toda.
— Absoluta?!
— Tão certo quanto 2 e 2 resultarem 4.
— Certeza matemática, então?
— Para ser preciso, geométrica.
— Se bem me lembro, e já faz algum tempo, 2 e 2 resultam sempre quatro, não?
— Sempre!
— Independentemente do que queiramos, certo?
— Independentemente!
— E como é que a sua certeza
— E como é que a sua certeza não é a minha?
— Como?
— Como não?
— Ora, velho!
— E se, nesse caso, 2 e 2 forem diferentes de 4?
— Ora, para um místico envelhecido isto é bem possível! Mas, olhe ao seu redor, não há nada! Nada a não ser nós mesmos! Tudo pode acabar a qualquer instante!
— É isso o que você quer?
— Ora! A vida não tem um sentido, só há um sentido que nos leva ao ocaso! Que pena risível sinto daqueles que, ao ver o que se passou, passam os dias com dor a lamentar o que já não mais pode vir! Ora, nós mesmos colocamos significação para o que quer que seja!
— Entendo. Ora se trata de algo objetivo, tão claro e unívoco quanto a matemática. Num outro momento, então, nós colocamos significação para o que quer que seja…
— Como?
— Como não?! Agia por impulsos, não acreditava que aquele velho pudesse se soerguer até onde pensava se encontrar. Aquele cume era só seu, não podia reparti-lo com ninguém, o ar rarefeito por si só não o permitiria.
— O que quer dizer, velho?!
— Digo o que quero?
— Diga algo!
— Receio não poder dizer o que quer ouvir…
— Ora!
— Já chegou a considerar que 2 e 2 podem às vezes resultar diferentes de 4?
— Ha, ha, ha! É impressionante como os velhos abrem mão do pensamento!
— “Talvez existam mais coisas entre o céu e a terra do que julga nossa vã filosofia!”
— Como se resigna! Covarde!
— “Por mais que se esforce, você pode”, com toda a sua coragem, “acrescentar um só dia à duração de sua vida?” A pergunta derrubou-o de pronto, trouxe-lhe a ardência de um tapa.
— Ora, quero lutar, velho – e já entre lágrimas e com a voz tremulante -, quero alcançar algo a despeito do tempo que se esvai!
— E se sentir dor quando alcançar?
— Como?
— Como não?
— Ora, não brinque comigo!
— Mas o que você quer verdadeiramente?!
— Ora, quero… quero… Ficou pensativo por um breve instante, mas nada lhe vinha. Sentiu um ódio crescente daquele ancião extático! Como pode com parcas perguntas derrubar aquilo que de mais sólido possuo?!
— Não quer abrir mão de si próprio, não?
— Quero viver! É isso o que quero!
— Mas se você já vive?!
— Quero mais! Quero alcançar meus objetivos!
— Que são?!
— Ora, posso até enumerar, mas na verdade o hoje não é mais o amanhã… Que dirá o ontem…Só se alcança mesmo a morte!
— Ouça: “quem sabe?, não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo sobre a terra, aquele para o qual tende a humanidade, consista unicamente nesta continuidade do processo de atingir o objetivo, ou, em outras palavras, na própria vida e não exatamente no objetivo, o qual, naturalmente, não deve ser outra coisa senão que dois e dois são quatro, isto é, uma fórmula; mas, na realidade, dois e dois não são mais a vida, mas o começo da morte!”
— Não, não! Não aceito a vida que não seja esta, que não seja a materialmente observável! “Para mim a eternidade é uma idéia impossível de compreender, algo de enorme, imenso. Mas por que há de ser precisamente imenso? E, de repente, em vez disso, imagine, velho, que existe aí um quarto, no gênero duma sala de banho – um quarto tão horrendo quanto este – em pleno campo, negro de fumo e com aranhas por todos os lados, e que a isso se resume a eternidade. Olhe, eu imagino-a muitas vezes assim!”
— Quão grande é a sua dor!
— Chega de me interpretar, velho! Vamos, responda! Somos potentes ou não para suportar tudo isso?!
— O ser humano se basta a si mesmo? Não mais agüentando aquilo que considerava um perene esquivar, o rapaz retirou da cintura o objeto que há muito o constrangia. Sem mais, trouxe aquela arma fria e resoluta junto à têmpora do oráculo.
— E agora, velho, quem é que espera o tempo de cada coisa? Se eu apertar o gatilho daqui a 1 minuto, saberei certamente o seu tempo pela minha determinação!
— Enfim encontrou a tensão!
— Como?
— Como não?!
— Ora, chega de brincadeiras. Fez menção de pressionar o gatilho, mas uma curiosidade inapelável o ligava àquele ser que há pouco só lhe transparecia asco.
— Encontrou a tensão, rapaz. 2 e 2 serão 4 se você quiser!
— Como?
— 2 e 2 só serão 4, rapaz, se você assim o fizer!
— Impossível!
— É o seu arbítrio, jovem, seu livre-arbítrio!
— Não é possível, não posso escolher nada! Se tudo já está dado sem que eu tenha participado da definição dos limites…
— Escolha… escolha, rapaz! Só não queira o que não pode, do contrário, 2 e 2 voltam a ser 4 independentemente do que queiramos!
— Ora, velho, você está sob o meu jugo, a vida agora não me subjuga! Como ousa restringir e orientar minhas escolhas?!
— Não vai fazer…
— Como? Dúvida?!
— Não vai fazer… Testa empapada. As gotas de suor transcorriam abundantemente, mal conseguia ver adiante. O velho parecia se desdobrar. A princípio, um. Logo dois, três… Sentia-se cercado, perscrutado, invadido. Uma arma, poucas balas… Era mais uma vez fraco.
— Não vai fazer, rapaz! Se o fizer, quem vai afirmar para você que verdadeiramente o fez?! Quem vai concordar com você?! Só reconhecemos o que conhecemos em conjunto, juntos! E “em verdade, em verdade lhe digo: se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer, produz muito fruto”. Não notou o leve afastamento do oráculo que, impassível, resvalou o indicador nos lábios do rapaz para que este não mais se manifestasse. Distanciou-se com cuidado, deu então as costas ao visitante. Súbito, elevou as mãos às alturas e prostrou-se junto ao chão, a testa no ladrilho frio. Aquele outro, o mesmo que só se via inteiro, prontamente se fracionou. Não suportou aquele destoar que mais lhe pareceu um acinte. Trouxe novamente a mão letal junto a si – ato que há muito ensaiava. Mesmo tresvariando, não deixou de cumprir a coisa naquele tempo. Um corpo estendido no chão. Não mais era, porque já havia sido.
Agradeço profundamente aos meus mestres Fiodor Mikhailovitch Dostoievski, William Shakespeare e Blaise Pascal pelos ensinamentos. Mas, principalmente, nada disso viria à tona sem Jesus Cristo.