Arquivo para novembro, 2005

Ofuscamento por palavras

Posted in Sem categoria on 4 de novembro de 2005 by Dmítri Cerboncini Fernandes
O sistema capitalista tardio, desumanidade amplificada a qual todos nós estamos expostos, formata os nossos mínimos atos. O ofuscamento coletivo é retraduzido por diversas maneiras, todas elas auto-fágicas, como prazeres mórbidos os mais diversos manifestados em todas as situações de interação.
Rohden, intelectual religioso francês do início do século XX, descreveu de maneira cirúrgica uma das manifestações do ofuscamento coletivo que vivemos: o que se dá por meio da maledicência. Ainda que um pouco ingênua sejam as suas análises e projeções, as constatações, se enxergadas por um ângulo da crítica social, podem ser consideradas de extrema valia.
Leiamos e reconheçamo-nos nestas palavras, e tentemos extirpar de dentro de nós o maléfico sistema produtivo enraizado até a última de nossas entranhas, sabendo que sofremos males coletivos. Não estamos sozinhos nesse mundo depressivo. Há um mal-estar geral, que ronda a humanidade…

***

“Toda pessoa não suficientemente realizada em si mesma tem a instintiva
tendência de falar mal dos outros.
Qual a razão última dessa mania de maledicência?
É um complexo de inferioridade unido a um desejo de superioridade.
Diminuir o valor dos outros dá-nos a grata ilusão de aumentar o nosso valor
próprio.
A imensa maioria dos homens não está em condições de medir o seu valor por
si mesma. Necessita medir o seu próprio valor pelo desvalor dos outros.
Esses homens julgam necessário apagar as luzes alheias a fim de fazerem
brilhar mais intensamente a sua própria luz.
São como vaga-lumes que não podem luzir senão por entre as trevas da noite,
porque a luz das suas lanternas fosfóreas é muito fraca.
Quem tem bastante luz própria não necessita apagar ou diminuir as luzes dos
outros para poder brilhar.
Quem tem valor real em si mesmo não necessita medir o seu valor pelo
desvalor dos outros.
Quem tem vigorosa saúde espiritual não necessita chamar de doentes os outros
para gozar a consciência da saúde própria.
As nossas reuniões sociais, os nossos bate-papos são, em geral, academias de
maledicência.
Falar mal das misérias alheias é um prazer tão sutil e sedutor – algo
parecido com whisky, gin ou cocaína – que uma pessoa de saúde moral precária
facilmente sucumbe a essa epidemia.
A palavra é instrumento valioso para o intercâmbio entre os homens. Ela,
porém, nem sempre tem sido utilizada devidamente.
Poucos são os homens que se valem desse precioso recurso para construir
esperanças, balsamizar dores e traçar rotas seguras.
Fala-se muito por falar, para “matar tempo”. A palavra, não poucas vezes,
converte-se em estilete da impiedade, em lâmina da maledicência e em bisturi
da revolta.
Semelhantes a gotas de luz, as boas palavras dirigem conflitos e resolvem
dificuldades.
Falando, espíritos missionários reformularam os alicerces do pensamento
humano.
Falando, não há muito, Hitler hipnotizou multidões, enceguecidas, que se
atiraram sobre outras nações, transformando-as em ruínas.
Guerras e planos de paz sofrem a poderosa influência da palavra.
Há quem pronuncie palavras doces, com lábios encharcados pelo fel.
Há aqueles que falam meigamente, cheios de ira e ódio. São enfermos em
demorado processo de reajuste.
Portanto, cabe às pessoas lúcidas e de bom senso, não dar ensejo para que o
veneno da maledicência se alastre, infelicitando e destruindo vidas.
Pense nisso!
Desculpemos a fragilidade alheia, lembrando-nos das nossas próprias
fraquezas.
Evitemos a censura.
A maledicência começa na palavra do reproche inoportuno.
Se desejamos educar, reparar erros, não os abordemos estando o responsável
ausente.
Toda a palavra torpe, como qualquer censura contumaz, faz-se hábito negativo
que culmina por envilecer o caráter de quem com isso se compraz.
Enriqueçamos o coração de amor e banhemos a mente com as luzes da
misericórdia divina.
Porque, de acordo com o Evangelho de Lucas, “a boca fala do que está cheio o
coração”.

Humberto Rohden

A indústria e os filósofos.

Posted in Sem categoria on 1 de novembro de 2005 by Dmítri Cerboncini Fernandes
É impossível agir coerentemente de acordo com a ética cristã no mundo atual?
É impossível manter um pensamento coerente no mundo atual?
É impossível possuir pensamentos próprios no mundo atual?

Lixos culturais de diversos matizes (desde revistas sobre comportamento, fofoca e padronização dos desejos e atitudes adolescentes, até programas de rádio e televisão os mais variados) são conformadores e estruturadores das ações individuais no mundo moderno. A indústria cultural contraditoriamente (por que a “superestrutura” mantém e engendra os padrões da “infra”) adentrou também as fábricas, aonde imprime o ritmo de trabalho de acordo com as novas modas gestacionais e organizacionais de maximização de lucro.
A competição que antes era exaltada e louvada internamente à fábrica perdeu lugar hoje para o associativismo entre grupos de funcionários que competem e cooperam entre si. Está na moda também o relaxamento, a ioga, o cuidar da mente e do corpo.

Platão, Nietzsche, Dostoiévsky, Marx e até Jesus Cristo figuram para as pessoas ofuscadas pelo sistema como “gurus” individuais. O capitalismo tardio transformou a tradição filosófica em uma grande prateleira com opções mercadológicas. Você pode optar, de acordo com seu “taste”, entre vários pensamentos pretensamente intercambiáveis e disponíveis. O filósofo ou o fragmento da escrita deste filósofo que guiará seus passos na vida pessoal e na empresa dependerá do quão chamativa for a capa do livro, dos comentários que personalidades conhecidas e respeitadas (ex: Jô Soares, Mario Prata, Arnaldo Jabor, etc.) farão na contra-capa e, por fim, da sua escolha pessoal nessa profusão de liberdade disponibilizada pela maravilha do sistema mercantil.

Neutraliza-se (ou tenta-se neutralizar) assim o pensamento crítico, a tradição filosófica, enfim, o espírito. Mas cuidado capitalistas! Ainda que neutralizada, a filosofia continua perigosa. Ela ensina a relativizar valores, a questionar o real, a questionar-se a si mesmo.

Continuem com seus livrinhos inócuos de aeroporto. É menos perigoso para o sistema, sistema este tão forte porém tão frágil…feneceremos todos na depressão? Creio que sim.