Arquivo para março, 2009

Família, tradição, inércia

Posted in Sem categoria on 30 de março de 2009 by Dmítri Cerboncini Fernandes

O medo de futuro e decorrentemente de uma provável sensação de mudança surge a todo momento como uma constante na vida pretensamente líquida e cambiante da modernidade. Queremos todos – nós, da classe média, eles, os miseráveis, eles, os ricos, eles, os emergentes, eles, os remediados, eles, os desclassificados – apenas viver a nossa vidinha módica, rever todos os dias as referências simbólicas e materiais de nossa opulência ou de nossa miséria. Temos sempre, antes de tudo, que experimentar aquele gostinho de saber o que vai acontecer até o fim do dia. Ou de, pelo menos, antever razoavelmente as três ou quatro alternativas que poderão se abrir magicamente nos momentos de “liberdade” ofertados por esse período radiante: ir à balada, à academia – corpo são, mente sã. O contrário não é verdadeiro, segundo o dito – fazer compras em um shopping, assistir à familiar novela e reencontrar aqueles que amamos ao final da gloriosa jornada.

Vivemos para reviver. E assim as coisas caminham lentamente para o seu fim previsível – porém não visível. Chegará um dia, é claro, o momento de mudanças mais bruscas – ainda que o evitemos sempre em nossa mente. A perda de entes queridos abala as nossas rotinas tão rotineiramente estabelecidas. Expurgamos a mera possibilidade da perda do rotineiro como se fosse o próprio demônio que agisse naquele instante. Será mesmo a possibilidade de nunca mais revermos os entes o real motivo pelo exagero cometido nos enterros até mesmo por discretos burgueses charmosos? Por que será que a dor da saudade futura se coloca de modo tão premente naquele instante para logo em seguida ir se esvaindo e, com o passar de uns três meses, quase desaparecer por completo em termos de intensidade? Não seria a obrigatoriedade de uma mudança brusca, não planejada, ocasionada pelo súbito desaparecimento daqueles que faziam parte do quadro decorativo de nossas vidas que nos faria desesperar tanto nesses momentos recalcados até a medula?

A tradição que nos acomete desde o nascimento e que nos torna o que somos nessa sociedade é a de uma falsidade que nos corrompe como seres intrinsecamente mutáveis e mutantes: a de que nada deve mudar, nada muda e nada mudará. Lutamos sem mesmo nos darmos conta pelo mesmo, pela estática da vida, pelo não-movimento do fluxo do devir. E essa luta já perdemos no nível individual antes mesmo de começarmos a lutar, tendo em vista que somos mortais, que envelhecemos, que perdemos entes queridos, que passamos por situações e condições em sociedade as mais variadas e independentes de nossa vontade ou arbítrio. A sociedade é mudança em seu fulcro, mas aparenta inércia. Os arautos da defesa do mesmo, quer dizer, os que mais temem o novo e reproduzem as estruturas sociais incorporadas, podem ser vistos com facilidade dentre os defensores da forma “família”. O arranjo burguês figura como a solução para todos os problemas de ordem moral, para o ressurgimento dos “bons valores”, para a transmissão de toda a civilidade; enfim, como nos dizeres de Comte e Hegel, como a célula da sociedade.

De fato, esse arranjo dá o tônus do auto-engano compartilhado por todos nós: o de nossa eternidade eterna no mundo, o empuxo para a luta que travamos contra a realidade da morte e do envelhecimento, o véu que encobre a existência das distintas eras nas quais estamos inseridos, enfim, o escamoteamento de nossa condição de produtos e produtores da história. O casulo que nos protege é também aquele que não nos permite tornarmo-nos indivíduos de fato. Mamãe e papai, muito obrigado por tudo, pelo leite, pela casa, pela criação, pelas noites mal dormidas, pelo interesse desinteressado. Mas chega sempre para aquele que não teme o novo, o momento de dizer: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?”. As mães e pais nem sempre entendem e nem entenderão: a dinâmica social interdita em suas mentes a possibilidade de uma vida destemida em direção ao futuro. Benditos aqueles que podem e que conseguem proporcionar e viver a real liberdade a que estamos fadados a presenciar: a da ida constante do momento presente, sem buscar neuroticamente o tempo perdido.        

Dostoiévski era brasileiro?

Posted in Sem categoria on 24 de março de 2009 by Dmítri Cerboncini Fernandes

Três excertos de “Os Irmãos Karamazov”, última-prima obra de sua lavra, Editora 34, 2008, tradução de Paulo Bezerra.

Palavras de Hippolit Kiríllovitch, um promotor russo: 
“Nosso horror está justamente no fato de que esses casos sombrios quase já não nos horrorizam mais! Porquanto o que deve nos horrorizar é o nosso hábito e não um delito isolado desse ou daquele indivíduo. Onde estão as causas de nossa indiferença, de nossa atitude quase morna diante de semelhantes casos, de semelhantes bandeiras da época, que nos profetizam um futuro nada invejável? Estariam no nosso cinismo, na exaustão precoce da inteligência e da imaginação de nossa sociedade ainda tão jovem mas tão precocemente caduca? Estariam em nossos princípios morais abalados até os fundamentos ou, enfim, talvez no fato de até carecermos totalmente desses princípios morais?”
“Às caladas, a sós com sua consciência, talvez se pergunte: ‘Mas o que é a honra, e o horror ao sangue não será um preconceito?’. Talvez gritem contra mim e digam que sou um homem doente, histérico, que estou caluniando monstruosamente, delirando, exagerando. Vá lá, vá lá, mas Deus, como eu ficaria feliz se fosse assim! Oh, não me dêem crédito, considerem-me um homem doente, mas apesar de tudo guardem na memória minhas palavras: porque se apenas um décimo, apenas um vigésimo de minhas palavras forem verdade, ainda assim tudo será um horror. Reparem, senhores, reparem como os jovens se matam em nosso país: oh, sem nenhuma daquelas perguntas hamletianas do tipo: ‘O que haverá além?’, sem qualquer indício de tais perguntas, como se tudo o que diz respeito ao nosso espírito e ao que nos espera no além túmulo estivesse sepultado há muito tempo na natureza desses jovens, sepultado e coberto de areia.”
“Hoje, ou nos horrorizamos ou fingimos que nos horrorizamos, mas, ao contrário, nós mesmos saboreamos o espetáculo como adeptos de sensações fortes, excêntricas, que mexem com a nossa futilidade cínica e indolente ou, enfim, como criancinhas, afastamos de nós mesmos com as mãos os terríveis fantasmas e escondemos a cabeça no travesseiro até que passe a terrível visão para imediatamente esquecê-la em nossos divertimentos e jogos. Mas algum dia também nós teremos de começar nossa vida com sensatez e ponderação, também nós precisaremos olhar para nós mesmos como para a sociedade, também nós precisaremos compreender ao menos alguma coisa em nosso papel social ou quando mais não seja começar a compreender.”

E agora, Vandré?

Posted in Sem categoria on 16 de março de 2009 by Dmítri Cerboncini Fernandes

“Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão”

E lá se vão os findos e distantes anos sessenta. Quando a esquerda, de acordo com o que podemos depreender dos versos da famosa Marselhesa brasileira composta por Geraldo Vandré, tinha a certeza de deter a certeza e a Verdade dos tempos. O sentido estava escancarado, à mão. O bonde da história passava bem em frente a nossa fronte, bastava agarrá-lo e partirmos para a felicidade. A ação era dirigida pela práxis Ideal da transformação social e política. Tudo claro, transparente, límpido, não tinha como dar errado. Era só fazermos a hora, não esperarmos acontecer.

E agora, Vandré?
A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou. Você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama e protesta.

A falta de sentido era um privilégio dos “gorilas” do exército, que morriam pela pátria e viviam sem razão. Já em nossos dias , morrer pela pátria é um privilégio para poucos. Talvez um dos parcos momentos de sentido que movimentaria a vida nessa imensidão sem fim e sem fim.

E agora, Vandré?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou.

De não lograrem êxito na caça ao sentido como antigamente, querem que todos se esqueçam de que ele pode vir a existir. Não da maneira como foi ensinado aos seus pais, mas em uma nova forma. O homem foi cortado ao meio. Tudo o que sobrou foi o frenesi pela busca das satisfações imediatas -o sexo, o poder, a vaidade. Todos são inimigos de todos e de qualquer idéia do Todo. Só existem abismos, cisões, fracionamentos, ódios constantes e inconstantes. Mato porque quero. Porque me dá prazer. Just do it. Do estoicismo dos ingênuos partidários de Stálin e da revolução só sobrou o soçobramento à mercadoria. Porque a vida é agora.

E agora, Vandré?
Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora?

Mesmo assim, Jabores, Mainardis, Genoínos, Dirceus e tantos outros “companheiros” que capitularam às delícias do Kapital continuam teimando em nos ditar “o caminho, a verdade e a vida”. Para alcançarmos a plenitude na Terra, devemos fortalecer a democracia e suas instituições. A defesa da liberdade de imprensa é também algo de essencial a fim de que o mundo maravilhoso e livre em que vivemos seja preservado. O mote é esquecermos essas coisas de mudanças, revoluções, coisas que estão por fora hoje, segundo esses arautos do sentido. O hoje é o amanhã. E ponto.

E agora, Vandré?
Com a chave na mão, quer abrir a porta, não existe porta, quer morrer no mar. Mas o mar secou, quer ir para Minas, Minas não há mais. Vandré, e agora?

É, Vandré…disseram que você foi torturado, que sofreu uma lavagem cerebral, o que você nega até a alma. Hoje até você, Vandré… Até você foi visto em quartéis, em congraçamentos com generais e coronéis mundo afora. Virou a voz oficial do oficialato. O que houve, Vandré? Por que você nada fala? Desistiu da vida? Sim, ela está dura, Vandré. Deve ter sido dura para você também.

Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse… Mas você não morre,você é duro, Vandré!

Estaremos condenados a não mais sonhar? O fim é o não-fim? Desembestados como bestas a trafegarmos a galope pelos Cantos da Vida? O que é do Canto, Vandré? O que é da Vida, Vandré? Talvez se de uma única ação pudermos depreender o sentido mágico que nos foi tirado durante todo o tempo, tudo já terá valido a pena. Ainda que isso se dê apenas no último suspiro, no último olhar por esse vale de misérias. Será que não, Vandré?

Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, Vandré! Vandré, para onde?

PS: Este é o centésimo texto que publico neste humilde espaço desde que resolvi abrir essa cloaca de pensamentos esparsos. Muito obrigado a todos os que já passaram por aqui, que passarinho e que passarão.

De como a inveja dos fracos correlaciona-se com o poder dos mais fortes.

Posted in Sem categoria on 8 de março de 2009 by Dmítri Cerboncini Fernandes

“Protejam os fortes da ira e da inveja dos medíocres!” 

A frase não é exatamente esta mas o sentido sim. Nietzsche em “A genealogia da moral” observa com genialidade o quão funesta pode ser para um provável futuro glorioso da humanidade a mesquinhez intrínseca à condição dos mais fracos. Quer dizer, da grande maioria. 
Levada por inúmeros caminhos a desejar os desejos dos “inatingíveis”, a massa medíocre não pode presenciar sem ter revelada a ela própria a normalidade de sua condição o desfilar dos seres que se adequam com mais presteza e precisão aos ideais da sociedade. O desinibido, o loquaz, o convicto, o desprendido, o habilidoso, o feliz, o magnético, o capaz, todas essas figuras sociais despertam na massa indiferente aos iguais a atenção à diferença dos diferentes.
As estruturas do mundo dotaram as pessoas das aspirações a serem o que não são e nunca serão. Ou a terem o que não têm e nunca terão. Quando o Ser e o ter fundem-se na identidade esmigalhada do mundo do Capital, nada mais sobra a não ser o não-Ser. Tendo, sou feliz, eu sou. Não tendo, não sou. 
Tenho, logo existo.
Livros de aeroporto de auto-ajuda procuram vender a incorporação das “qualidades” descritas acima que os seres invejáveis possuiriam. O intercâmbio dessas “mercadorias” tão imateriais é, no entanto, algo muito difícil. Psicólogos e psicanalistas de plantão procuram vender algumas dessas mercadorias evanescentes, isto a muito custo e gasto de tempo. Tendo ainda a enxergar, no entanto, que as características invejáveis são quase que dons intrínsecos proporcionados pelas trajetórias sociais dos indivíduos. Dificilmente são adquiridas. 
E. ao contrário de Nietzsche, acredito ainda que o “fardo” que os fortes carregam nada mais são do que uma parte essencial da existência da sociedade de classes em que vivemos. Os ideais não são Ideais, são transfigurações dos ideais sociais de distinção.
Normativamente a solução seria o fim da sociedade de classes? As disparidades desapareceriam? Não, em absoluto. No entanto, a maneira de as encarar poderia ser modificada. Eis a pedra de toque. A partir do ponto em que as pessoas tomassem ciência de que os parâmetros de grandeza e de pequenez são parâmetros históricos, datados, contruídos e nada absolutos, seria possível o fim da inveja. Logo, o fim do apequenamento diante do gigante. 
Até lá, protejam-se ambos: fortes e fracos. A luta está lançada.