O medo de futuro e decorrentemente de uma provável sensação de mudança surge a todo momento como uma constante na vida pretensamente líquida e cambiante da modernidade. Queremos todos – nós, da classe média, eles, os miseráveis, eles, os ricos, eles, os emergentes, eles, os remediados, eles, os desclassificados – apenas viver a nossa vidinha módica, rever todos os dias as referências simbólicas e materiais de nossa opulência ou de nossa miséria. Temos sempre, antes de tudo, que experimentar aquele gostinho de saber o que vai acontecer até o fim do dia. Ou de, pelo menos, antever razoavelmente as três ou quatro alternativas que poderão se abrir magicamente nos momentos de “liberdade” ofertados por esse período radiante: ir à balada, à academia – corpo são, mente sã. O contrário não é verdadeiro, segundo o dito – fazer compras em um shopping, assistir à familiar novela e reencontrar aqueles que amamos ao final da gloriosa jornada.
Vivemos para reviver. E assim as coisas caminham lentamente para o seu fim previsível – porém não visível. Chegará um dia, é claro, o momento de mudanças mais bruscas – ainda que o evitemos sempre em nossa mente. A perda de entes queridos abala as nossas rotinas tão rotineiramente estabelecidas. Expurgamos a mera possibilidade da perda do rotineiro como se fosse o próprio demônio que agisse naquele instante. Será mesmo a possibilidade de nunca mais revermos os entes o real motivo pelo exagero cometido nos enterros até mesmo por discretos burgueses charmosos? Por que será que a dor da saudade futura se coloca de modo tão premente naquele instante para logo em seguida ir se esvaindo e, com o passar de uns três meses, quase desaparecer por completo em termos de intensidade? Não seria a obrigatoriedade de uma mudança brusca, não planejada, ocasionada pelo súbito desaparecimento daqueles que faziam parte do quadro decorativo de nossas vidas que nos faria desesperar tanto nesses momentos recalcados até a medula?
A tradição que nos acomete desde o nascimento e que nos torna o que somos nessa sociedade é a de uma falsidade que nos corrompe como seres intrinsecamente mutáveis e mutantes: a de que nada deve mudar, nada muda e nada mudará. Lutamos sem mesmo nos darmos conta pelo mesmo, pela estática da vida, pelo não-movimento do fluxo do devir. E essa luta já perdemos no nível individual antes mesmo de começarmos a lutar, tendo em vista que somos mortais, que envelhecemos, que perdemos entes queridos, que passamos por situações e condições em sociedade as mais variadas e independentes de nossa vontade ou arbítrio. A sociedade é mudança em seu fulcro, mas aparenta inércia. Os arautos da defesa do mesmo, quer dizer, os que mais temem o novo e reproduzem as estruturas sociais incorporadas, podem ser vistos com facilidade dentre os defensores da forma “família”. O arranjo burguês figura como a solução para todos os problemas de ordem moral, para o ressurgimento dos “bons valores”, para a transmissão de toda a civilidade; enfim, como nos dizeres de Comte e Hegel, como a célula da sociedade.
De fato, esse arranjo dá o tônus do auto-engano compartilhado por todos nós: o de nossa eternidade eterna no mundo, o empuxo para a luta que travamos contra a realidade da morte e do envelhecimento, o véu que encobre a existência das distintas eras nas quais estamos inseridos, enfim, o escamoteamento de nossa condição de produtos e produtores da história. O casulo que nos protege é também aquele que não nos permite tornarmo-nos indivíduos de fato. Mamãe e papai, muito obrigado por tudo, pelo leite, pela casa, pela criação, pelas noites mal dormidas, pelo interesse desinteressado. Mas chega sempre para aquele que não teme o novo, o momento de dizer: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos?”. As mães e pais nem sempre entendem e nem entenderão: a dinâmica social interdita em suas mentes a possibilidade de uma vida destemida em direção ao futuro. Benditos aqueles que podem e que conseguem proporcionar e viver a real liberdade a que estamos fadados a presenciar: a da ida constante do momento presente, sem buscar neuroticamente o tempo perdido.