Arquivo para outubro, 2010

Posted in Sem categoria on 1 de outubro de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

lat. diffèro,differs,distùli,dilátum,differre ‘espalhar, semear, espedaçar, agitar, abalar, difamar, retardar, dilatar, diferir’

O sonho da antiga metafísica – redundância pós-moderna? – era o de atingir a identidade plena. Sujeito e objeto, Deus e criatura, homem e natureza eram alguns dos termos opostos e complementares que, em um devir ideal, fundir-se-iam em apenas uma substância.

Hegel, o último filósofo-profeta, conferia ao que chamava de síntese, isto é, à unidade proveniente do movimento dialético entre os contrários, um estado qualitativamente superior ao daquele em que se encontravam. A História representaria, desse modo, a sucessão de fatos e realidades empíricas que, se vistos em conjunto e por meio da visão Ideal, se desvendaria ao sujeito cognoscente como o exuberante sentido da realização do Espírito.

Quer dizer, por trás de todas as mortes, de todas as guerras, de todas as misérias deste mundo estaria agindo uma mão providencial que, sem se dar à percepção imediata, ordena o real em direção ao Todo, ao Universal, à Síntese Suprema, destino glorioso reservado à Humanidade guiada pela astúcia da razão de um Deus Dialético.

O  ideal de realização universal de Hegel na história foi apreendido por Karl Marx sob o crivo das inversões materialistas bem conhecidas de todos nós. Em vez de traçar os caminhos do Espírito, cabia a Karl Marx interpretar o movimento material do mundo via a nova ciência que ele visava a estabelecer, o materialismo dialético. Posicionavam-se, dentro de sua visão, duas classes antagônicas em disputa perene, a dos expropriadores e a dos expropriados.

O advento do modo comunista de produção, a ser implantado via revolução da última categoria histórica de expropriados, a dos proletários modernos, figurava como sucedâneo terreno e terrestre à realização do Espírito Hegeliano. Ver-se-ia estabelecido, por fim, um novo Eliseu, este humano, demasiadamente humano.

O Universal se faria tangível no instante em que as classes se dirimissem em uma nova Humanidade, a Humanidade livre dos grilhões que a dividia atemporalmente entre dominantes e dominados. Importa aqui notar que tanto idealística, quanto materialisticamente, com o perdão da excessiva adverbialização, o alvo não deixava de se referir a alguma espécie de elemento Universal, em outras palavras, de uma meta, física ou não, representada por um elo de união, de uma identidade simultânea entre o concreto e o abstrato, o conceito e a coisa. Nações, cores, raças, gêneros, todas essas divisões desapareceriam de vista logo quando o homem se livrasse daquilo que não o permitia ser de fato  Homem. Eis no consistia a “verdadeira” libertação.

Século XX.

“Muro de Berlim”>>> “Reunificação das duas Alemanhas”>>> “Globalização”>>>”Fim da História”.

Século XXI

Segundo os próceres da nova idéia de liberdade, aí está tudo de importante que ocorreu no século XX. Um desavisado poderia pensar que com a “globalização” e a “reunificação dos dois mundos”, o comunista e o “natural”, teríamos atingido o objetivo final da proclamada Universalização. Não?

Jamais se gozou e se buscou tanto o gozo nas profundas entranhas e reentrâncias da propalada “diferença”. Todos se consideram diferentes e desejam mais do que tudo a diferença. Os próprios “dinossauros” universalistas hoje nada mais são do que uns “diferenteões”. Afirmar o Universal é ser diferente. Ser diferente é universal.

Mulher, Negro, Brasileiro, Etíope, Emo, Nikófilo, Filósofo, Protetor de Animal, Fotógrafo, Escritor, Advogado, Ecoativista, Comunista, Professor, Rapper, Tecnólogo da Informação, Marqueteiro, Prostituta, Intelectual, Frankfurtiano, Tarado, Tucano, Racionalista Cristão, Mano, Neonazista, Cinéfilo, Chavista, Consumidor Consciente, Blogueiro, Guitarrista, Foragido de Galés, Amolador de Facas, Boy, Executivo, Malhado, Amante, Bourdiesiano, Carregador de carrinhos de supermercado, Proxeneta, Esteticista, Esteta, Trabalhador CLT, Pedófobo, Militar, Estudante, Baladeiro, Psicanalista, Telespectador de seriados norte-americanos cool, Pós-Graduando em Sociologia e outros infinitos diferenciais identitários são incessantemente louvados, conquistados, rechaçados e, na medida do possível para cada um, intercambiados pelos seus ocupantes.

É aí que reside a universalidade hodierna: na impossibilidade de qualquer síntese universal, no reconhecimento de que a sociedade e suas posições estão dadas, cabendo a nós, tão-somente, aferrarmo-nos a algumas delas e a nos resignarmos à combinação que nos represente melhor. Tem que ser a melhor. Senão, o que seremos?

Somos o que queremos/podemos ser, e não queremos nada mais do que isso: ser o que está aí, ser o dado, ser o concreto-real. Que o século XIX enterre consigo seus sonhos, ideais, utopias e devires “autoritários”! Somos, afinal livres! Livres em nossas diferenças! Universais em nossos isolamentos! Ensimesmados em busca de nós mesmos no que o Grande Outro, a sociedade, nos dispõe!

A liberdade reside na escolha que podemos fazer entre labels: basta deixarmos fluir a afinidade entre eles e desfrutarmos do resultado: o nosso Ser moderno, agregado de literato, pobretão, mulherengo, viajante, ateu e cínico, por exemplo, ou de trabalhador, responsável, corinthiano, evangélico, administrador e BBBlófilo.

As possibilidades estão aí: basta sabermos como agarrá-las: espalhemos, semeemos, espedacemos, agitemos, abalemos, difamemos, retardemos, dilatemos, difiramos, afinal!

Difiro, logo existo.

Existe?