“Só quem entende a beleza do perdão pode julgar seus semelhantes”
Sócrates.
“Só quem entende a beleza do perdão pode julgar seus semelhantes”
Sócrates.
– Pai, já escolhi o que quero ser.
-Pois eu já sei o que você deve ser. Seguirá o meu caminho. Um belo e estável emprego propiciado pelo Estado Austríaco te aguarda.
– Não, pai… eu queria dizer ao senhor que tenho outros planos… Há algo que me inspira, que me arrebata completamente, sem o qual não poderia viver. Quero ser artista, pai! Nada há de mais sublime, de mais necessário em minha vida! Eu respiro e transpiro arte sem cessar, acontece mesmo sem eu querer, como uma coisa que não posso resistir! E prometo ao senhor, meu bom pai, que me dedicarei ao máximo, que, de minha parte, farei tudo par..
O pai retorce a expressão facial, franze a testa, pressiona o maxilar incessantemente e, preparando a garganta com o olhar fulminante, o interrompe num misto de grito e cuspe:
– Nunca! Nenhum filho meu será artista! Só por cima de meu cadáver!
O susto do filho é menor do que sua resignação, pois já esperava negativa parecida. Seu dilaceramento fervilhante o cega, dando expressão a mais lacônica, resoluta e exata resposta:
– Pois se assim tiver de ser, assim será.
O pai lhe esbofeteia a cara. O menino de treze anos cai ao chão. A mãe, logo em seguida, o soergue. Aconchega-lhe junto ao ventre, de onde poderia não ter saído. A cabeça latejante do tapa paterno recebe as carícias das mãos da mãe.
O menino cresceu. Quis a Arte, a arte não o quis.
O Estado, por fim, o acolhe de braços abertos. Lá, o ex-menino se sentiria novamente enlaçado por sua mãe.
O pai ganha a queda de braço.
E o mundo conhece Adolfo, um alemão.
Não uso muito este espaço para comentar fatos diversos. Nós, os sociólogos, perdemos a primazia do enquadramento simbólico do real logo quando de sua partida para a existência há muito tempo. Os jornalistas e outros opiniólogos, como os sumos sacerdotes da economia, agarraram-se a esta função e a levam a sério.
Vou abrir uma exceção, no entanto, ao proferir algumas palavras sobre os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro.
Há uma contenda aberta sobre a realização de um evento de tal porte em uma cidade sulamericana. Segundo pesquisas de opinião – como se elas dissessem alguma coisa… -, os próprios “brasileiros” se dividem sobre isso.
O blá-blá-blá de ambos os lados da contenda resume-se assim: de um lado, há os entusiastas globais, os festeiros que nada mais pensam e sabem a não ser o que a grande imprensa encampa. De outro, há os pseudo-esclarecidos, aqueles que bradam aos quatro ventos que as Olimpíadas trarão um grande malefício ao país, tendo em vista que a corrupção rolará solta, que o país precisa primeiro resolver seus problemas básicos etc. etc. etc…
As mesmas opções ideológicas estão claramente postas de uma forma bem expressiva naquela propaganda das havaianas, a do pagode: de um lado, os patuscões sambistas em sua roda-fake. Cerveja AmBev custando o que custar, até o dia amanhecer. “O brasileiro é alegre”.
De outro, uma menina de óculos de aros grossos com livros a tiracolo, certamente apoiadora de alguma ONG e com tendências meio esquerdistas. Ela entra no bar chamando os sambistas à razão. Não caberia, para ela, demonstrar felicidade na atual ordem mundial, tendo em vista que presenciamos uma “crise”. “Um chato só não faz verão. Nem inverno, muito menos outono”.
A alegria, por fim, abocanha a crítica da crítica de botequim. A tristeza anunciada incorpora-se à letra de uma canção, servindo de mote para o pagode continuar. Movimento prenunciador.
A enformação das tristes mazelas passa pelas nossas “beleza e alegria”. Processo que possibilitou a volta dos “olhos do mundo” a nós. Lula é rei.
A festa está armada. A Rede Globo, enfim, terá o seu merecido reconhecimento. Organizará aquilo que promete ser o maior evento deste país desde o século XX.
A “alegria” do brasileiro subsumirá a “tristeza”. Pedindo a ela, em forma de farra, “por favor, vá embora” . Os críticos de botequim, como a menina da propaganda, não serão escassos. Se calarão, por fim, e cairão no samba, embora com bufos e resignação. Fingem, também adoram tudo isso.
E Serra cai no samba até o dia amanhecer no morro de Mangueira. Traz em seu auxílio Príncipe Charles, quem o ensinará a arte da dança africana de Cartola e Candeia.
O “as Olimpíadas podem tranformar um país” juntar-se-á com o repisado “agora vai”. Outras quimeras vão ser reeditadas mais uma vez. As lamúrias de que “este país é uma vergonha”, o “onde já se viu tanta roubalheira”também habitarão os discursos de muitos. E o melhor disso tudo é que é perfeitamente possível se intercalar essas (o)posições ao sabor do vento, sem problema nenhum.
Bem-vindos à terra do samba, do futebol e da mulata, Jogos Olímpicos! País em que se plantando, tudo dá. País do futuro. Coração do mundo. Mundo que, enfim, mostrou a sua cara. E ela não é nem um pouco diferente da nossa, por mais que procurem nos convencer disso.
“O ressentimento é uma revolta submissa.
A decepção, pela ambição que aí se revela, constitui uma confissão de reconhecimento.
O conservantismo jamais se enganou com isso: sabe ver aí a melhor homenagem prestada à ordem social, a do despeito e da ambição frustrada;
assim como sabe descobrir a verdade de mais de uma revolta juvenil na trajetória que conduz da boemia revoltada da adolescência ao conservantismo desencantado ou ao fanatismo reacionário da idade madura”.
Ele possui um pênis latejante. Ela, uma vulva voluptuosa. Ambos os corpos são perfeitos.
Nós nunca nos realizamos.
O poeta misógino ousou desafiar o marido amigo de Marianne Weber, amante platônico de Mina Tobler e consumado de Elsa Von Richtoffen em seu tempo…
Rebanhos gordos, rebanhos magros. Bois de linha, de corte, de morte; bois sem raça, sem graça, sem pasto, com sinos pendurados ao pesocoço. Tais as diferenças existentes entre os sobreviventes que habitam a grande fazenda chamada São Paulo.
Angústia: desejo desprovido de objeto.
A sociologia passou de um momento a outro a me angustiar. Não me excita mais, ao menos momentaneamente. Considero-a neste instante limitada e limitante, espécie de camisa de força podadora da imersão do raciocínio. Como, aliás, toda ciência passa a ser depois de determinado limite. Qual seria este? Isto é objeto pra outro tópico…
Preciso de ar. De luz.
Me vejo muitas vezes como o jacaré: mergulho e passo horas dentro d’água até apreender o que tenho de aprender. No entanto, tenho pulmões, e não guelras ou brânquias. Tenho de subir pelo menos um instante para dar uma respirada. Volto lá para baixo, para o lodo, para o meu lar, um pouco mais aliviado…
Terminemos o que temos para terminar e partamos pra outra… Não seria capaz de passar mais trinta anos de minha vida fazendo a mesma coisa, a mesma sociologia do mesmo jeito e com os mesmos objetos e objetivos: traçar os elos significativos entre trajetórias e produções.
Espero, pelo menos, dar mais trabalho a um neófito na sociologia, como eu, caso ele tente me tomar como objeto.
Despistar o fingidor que finge sentir a dor que deveras sente na sociologia. A mesma dor do mundo, que é única.
Há vida.