Carta de amor a Gregório Duvivier

Posted in Sem categoria on 12 de setembro de 2016 by Dmítri Cerboncini Fernandes
Prezado Gregório Duvivier, não o conheço pessoalmente, sei que jamais lerá isso, mas me senti tocado pela sua carta aberta à sua ex(?)-amada no dia de hoje. Resolvi contar uma coisa a você: o amor é um acidente, que geralmente não dá certo. Ainda bem que você enxergou isso e se contentou com um mero filme que resumiu o amor de vocês. Filme que, depois de um curto lapso de tempo, ninguém mais sequer se lembrará, nem você nem ela, assim como, provavelmente, o amor que possa ter existido entre vocês.
Sim, Gregório: o amor nem sempre fica em primeiro plano. E o amor quase nunca “vence”. Muito pelo contrário; geralmente se acredita em que o amor supere tudo, que o verdadeiro amor será recompensado ao final, que o amor romperá as barreiras da indiferença, do ódio, da mágoa.
Infelizmente tenho que reafirmar que não, que não é isso o que costuma acontecer. Longe disso; o ressentimento, a incapacidade de perdão, o desespero, o desprezo, os impulsos ao rechaço, à vingança, ou seja, todas essas formas de desamor são sentimentos e ações muito mais fortes, mas muito, muito mais poderosos do que o amor. E pode se definir o amor como quiser, Gregório; seja nos termos de Camões, de Fernando Pessoa, de Jesus, de Platão, ou mesmo de Nietzsche: tudo o que estou dizendo permanece válido quando o amor se encontra em seu formato “livre”, ou seja, sem se embasar em laços de parentesco.
Uma coisa é imaginarmos um mundo conforme gostaríamos que fosse; outra é o encararmos do modo como ele é. E neste mundo, no nosso mundo e em nosso tempo, o amor é um sentimento fraco, inferior, impotente quase, que nada consegue, que nada impulsiona, escasso e moribundo. Seja ele em sua manifestação romântica, a dois, ou em sua manifestação universal e acósmica, mais raro e escasso ainda. O amor é uma utopia presente e um acidente real, quando ocorre verdadeiramente. Todos querem ser amados e todos têm a ilusão de querer amar, mas ninguém verdadeiramente quer amar, apenas ser amado. Quem ama se enfraquece, se doa, se abre a um outro para além dele mesmo, e perde assim “o controle”. O mundo não quer isso de ninguém, caro Gregório. Temos que ser fortes, brutos, impositivos, impiedosos, auto afirmativos e independentes.
Há pessoas que se vangloriam de nada amar, veja só… De não se apegarem a nada, nem a plantas, nem a animais, quanto mais a pessoas… Temos que ser libertos de tudo e de todos, e só darmos atenção a nós, ao nosso eu, aos nossos sentimentos, aos nossos interesses, ao nosso corpo, ao aqui e agora. Metas, prazeres, planos, vontades e representações: a busca da potência nos guia, não um parênteses que pode nos arrastar ao nada de nós mesmos, à solidão reflexiva, ao sofrimento mais atroz, do dia para a noite. Devemos, reza a cartilha do bom viver, no máximo, mas no máximo mesmo, respeitar o outro, o próximo, mas não o amar. Oferecer amor gratuitamente está fora de cogitação; cobrá-lo quando nos convém – e fingirmos que, antes, o havíamos ofertado aos borbotões – nos torna superiores moralmente, ao menos para nós mesmos. Nos tranquiliza a consciência.
O amor, além de tudo isso, Gregório, é fora de moda; hoje em dia a melhor tendência é a de transformá-lo, quando ele existe, em uma diluição de nada, em uma calma e tranquila “amizade” entre os dois que antes se amaram “perdidamente”, ou que imaginaram se amar. É o que provavelmente acontecerá entre vocês dois. Não que eu ache que meus avós tenham se amado por terem vivido a vida toda juntos; não, se eles se amaram em algum momento, era claro que ao final da vida eles já não se amavam mais, que apenas se suportavam por conta de regras e mores sociais, os mesmos que hoje mandam as pessoas não mais se suportar. Enfim, era a mesma coisa que hoje, só que de uma maneira diferente.
O amor de fato quase nunca existiu; ele é desses contos de fada, um mito, que deve ter existido de forma gratuita e universal em um ou outro momento da humanidade, e se espalhou em tempos imemoriais o boato de que ele poderia ser alcançado, vivido plenamente, e que todos nós teríamos, em tese, a capacidade de amar. Algo como os fenômenos paranormais, que todos sabemos que existem, que já aconteceram e podem, porventura, acontecer de novo, ao lado de casa ou com algum parente distante, mas quase ninguém presenciou, ou viu, ou conseguiu fazer algo assim, ou realmente acredita naquilo.
A ilusão do amor recobre o que de fato é posse, paixão por certo tipo de beleza, de manifestação de poder, por uma posição social, por uma história de vida, ou por aqueles que buscam a si mesmos em outros. Ou seja, amor por si mesmo, identificado em um objeto exterior. E tudo isso, no primeiro vendaval, se desfaz como castelo de areia, dando à mostra que o amor verdadeiro nunca tinha existido de fato.
As pessoas hoje são tão fortes, Gregório, mas tão fortes, que não precisam amar. Sim, Gregório, pois amar é difícil, é custoso. Em um mundo em que o hedonismo é regra, devemos apenas maximizar prazer, jamais dor. É preciso muita energia, muito empenho, muita dedicação, equilíbrio e disposição para amar. Sobretudo para continuar amando, ao longo do tempo, depois dos fracassos, das perdas, depois de tudo o que se passa em qualquer vida “normal”. Depois dos erros e acertos que o outro amado comete, e que nós sempre cometemos.
Depois de tudo, como diria Hegel, para se encontrar é necessário se perder, Gregório. E amar é se perder, se perder em outro, ou não se importar em se perder. Se todos estão tão encontrados, Gregório, se estão tão certos de si, se todos sabem realmente o que querem, como se perder? Como podem perder sua personalidade, seu orgulho, por causa de um outro qualquer?
É Gregório, a vida nos ensina: amar ao próximo somente se ele nos ama. Se ninguém nos ama, não amemos ninguém. Esta é a lei e os profetas. Existem, no entanto, os imbecis que, não se sabe como nem por quê, continuam amando, mesmo depois de tudo isso. Aí eu o convido para ler a minha “Dialética do Absurdo“.
Um abraço.
Eu continuarei a amar, por opção, ou loucura.

Dialética do Absurdo

Posted in Sem categoria on 3 de março de 2016 by Dmítri Cerboncini Fernandes
O Homem do absurdo diz: “Perdão por tudo o que te fiz. Eu te amo”.
O homem normal, o homem do mundo diz assim: “Não vejo sentido em tentar te mostrar o absurdo que existe no contraste entre tudo o que foi dito antes e o que foi dito agora…”

Sim, absurdo. Esta é palavra exata: absurdo. Ela define justamente tudo aquilo que foge ao “normal”, ao “esperado”, ao “dado”, e desse modo, ao “estático”, ao “sempre mesmo”, ao “natural”.

Absurda foi a conversão de Paulo na estrada para Damasco.

Tão absurda quanto o beijo de Jesus em Judas.
Muito, mas muito absurda foi a atitude de Maria Madalena, ao deixar repentinamente sua vida de gozos pretérita e passar a seguir um pé rapado, sem eira nem beira, que ia ser morto e difamado pelo seu próprio povo.
Absurdo também foi Raskolnikov ter se entregue às autoridades, assim como ter se sentido livre após ter passado pelos anos de provação na Sibéria.
Absurdo somos todos nós, que ainda olhamos uns nos olhos dos outros depois de Auschwitz, depois de Torquemada, depois dos Gulágs, depois de Hiroshima, depois dos navios negreiros, e ainda conseguirmos nos amar tanto em alguns casos.
Assim como absurdas são as linhas de Guernica, quando um absurdo sublimado expressa o absurdo do real, este, de fato, um absurdo negativo. Quem diria que aquele absurdo absoluto poderia vir a se tornar um absurdo estético, com tamanha beleza em meio à destruição mais pura?
Sim, um dos maiores absurdos, segundo o espiritismo, seria uma mãe tomar em seu ventre seu antigo assassino, ou o antigo algoz que a tenha deixado desamparada em tempos pretéritos. Querem maior absurdo do que este?
E o “amar aos seus inimigos, fazer bem aos que vos perseguem e vos caluniam”… Quer um mandamento mais absurdo?
Sócrates não querer ser salvo e tomar a cicuta para preservar seus ideais e servir de exemplo encarnado à justiça e à verdade é outro dos grandes absurdos que vimos na história da humanidade.
Há também absurdos pequenos, mas nem por isso menos absurdos, como a atração que, depois de erros e mais erros, algumas pessoas ainda sentem umas pelas outras.
Enfim, há diversos tipos de absurdo, e que belos, sublimes, restauradores e libertadores são esses absurdos, não?

O perdão de fato é o suprassumo do absurdo.

Assim como o esquecimento das ofensas, o amor desinteressado, a lealdade por uma ideia, por uma pessoa, daqueles que sabem que se prejudicarão mundanamente por levarem a cabo essa sua própria lealdade a essa própria ideia ou pessoa.
O absurdo é o movimento real do mundo, o Movimento em seu estado puro. É a mão invisível do Espírito atuando em nós e por nós. Por meio do absurdo, a cicatriz da História percorre seu lento e longo caminho, e a possibilidade da redenção bate às nossas portas a cada vida, a cada dia, a cada segundo. Basta a nossa vontade em compreendê-lo e a aceitá-lo. Para nós e para os outros.
O absurdo é a síntese cujo resultado concretizado rompe com a aparência de estaticidade, do sempre-o-mesmo, da permanência.
O absurdo faz com que nos renovemos, com que os atos passados possam ser refeitos, com que nossos erros possam ser transformados.
O absurdo compreendido em sua essência nada mais é do que a lucidez objetiva se autodeterminando em meio e por meio de nós, subjetivamente.
O absurdo é o amor se exteriorizando, sem peias, sem ressentimentos.
O absurdo é o impulso do ato revolucionário em si mesmo, é a vida de uma pequena flor pulsando em meio à selva de concreto, é o mártir a sorrir para seu algoz, e sorrir ao caminhar para a boca dos leões.
O absurdo é o que de mais lúcido este mundo absurdo nos lega.
É a chave para enxergarmos para além das aparências, para agirmos para além dos preconceitos e preceitos “realistas”, para entendermos o mundo e nós mesmos neste mundo.
Entreguemo-nos ao absurdo, e o absurdo nos guiará pelo teatro da vida, pelo elo que nos vincula indelevelmente à totalidade e ao próximo como se fôssemos nós mesmos.
O sentido se desvelará, e o colorido da imensidão infinita se descortinará aos nossos olhos, cansados do cinza que nos confina em um falso conforto.

O absurdo é o estranho mais próximo a nós.

[Silêncio…]

Amar amando a si

Posted in Sem categoria on 16 de novembro de 2011 by Dmítri Cerboncini Fernandes

[…] A visão sociológica desencantada, desmistificada, é imediatamente compreendida pelos artistas de vanguarda; eles também lutam contra o farisaísmo estético, essa espécie de adesão narcisista que não consiste em amar a arte, mas sim em amar-se amando a arte.

Pierre Bourdieu, Sobre o Relativismo Cultural.

Futuro Antigo Testamento

Posted in Sem categoria on 5 de janeiro de 2011 by Dmítri Cerboncini Fernandes

Y entonces fue que dijimos:
Señor, enséñanos
a levantar ciudades
que sean iguales a los árboles
que llegan a estar maduros
antes de quedarse secos
(Génesis, versículo primero,
capítulo 1972, del futuro testamento).

Ciudades, fundadas para odiar.
Ciudades, tan altas, ¿para qué?
Ciudades, cadáveres de pie.
Ciudades, al polvo volverán.

Si aquí la estrella no se ve jamás,
de aquí la tierra, el ser y el sol se irán,
y reinará la soledad total,
que escrita fue la destrucción final.

Ciudades, fundadas para odiar.
Ciudades, tan altas, ¿para qué?
Ciudades, cadáveres de pie.
Ciudades, al polvo volverán.

Qué lindo será reconstruir.
Querida, te beso hasta engendrar
un hijo con vuelo de albañil en paz.

Qué lindo, te nace una ciudad,
qué calles te sangran por los pies,
qué torre será tu corazón con fe.

Y en cada charco habrá un pequeño mar
y en cada fragua un inventor de sol
y en cada puerta la inscripción astral
y en cada triste un aprendiz de Dios.

Ciudades, ciudades que serán.
Ciudades, sentí su anunciación.
Ciudades, las vengo a construir.
Ciudades, del polvo volverán.

(Astor Piazzolla e Horacio Ferrer)

***

No princípio eram aldeias;

Guerras, saques, mortes, estupros e escravização.

Poder.

Vêm as fortificações.

Anos se passam.

Guerras, saques, mortes, estupros e escravização.

Poder.

Vêm as cidades.

Señor, enséñanos
a levantar ciudades
que sean iguales a los árboles
que llegan a estar maduros
antes de quedarse secos

Estátuas eqüestres, ensinem-nos

a fazer de todas as cidades

cópias fiéis das nossas

que eterna sensação de conquista

as funde embalsamadas em sangue.

Ciudades, fundadas para odiar.
Ciudades, tan altas, ¿para qué?
Ciudades, cadáveres de pie.
Ciudades, al polvo volverán.

Cidades, fundadas pelo ódio.

Cidades, seriam baixas por quê?

Cidades, cada vez mais em pé.

Cidades, o pó é sua feição.

Si aquí la estrella no se ve jamás,
de aquí la tierra, el ser y el sol se irán,
y reinará la soledad total,
que escrita fue la destrucción final.

Estrela, terra, ser?

(Sol)idão.

A destruição final ainda será?

Piazzola não conheceu o Minhocão…

Qué lindo será reconstruir.
Querida, te beso hasta engendrar
un hijo con vuelo de albañil en paz.

Qué lindo, te nace una ciudad,
qué calles te sangran por los pies,
qué torre será tu corazón con fe.

Y en cada charco habrá un pequeño mar
y en cada fragua un inventor de sol
y en cada puerta la inscripción astral
y en cada triste un aprendiz de Dios.

Ciudades, ciudades que serán.
Ciudades, sentí su anunciación.
Ciudades, las vengo a construir.
Ciudades, del polvo volverán.

Sim, Piazzolla.

Ainda que as cidades queiram o oposto

não percamos a esperança.

Posted in Sem categoria on 1 de outubro de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

lat. diffèro,differs,distùli,dilátum,differre ‘espalhar, semear, espedaçar, agitar, abalar, difamar, retardar, dilatar, diferir’

O sonho da antiga metafísica – redundância pós-moderna? – era o de atingir a identidade plena. Sujeito e objeto, Deus e criatura, homem e natureza eram alguns dos termos opostos e complementares que, em um devir ideal, fundir-se-iam em apenas uma substância.

Hegel, o último filósofo-profeta, conferia ao que chamava de síntese, isto é, à unidade proveniente do movimento dialético entre os contrários, um estado qualitativamente superior ao daquele em que se encontravam. A História representaria, desse modo, a sucessão de fatos e realidades empíricas que, se vistos em conjunto e por meio da visão Ideal, se desvendaria ao sujeito cognoscente como o exuberante sentido da realização do Espírito.

Quer dizer, por trás de todas as mortes, de todas as guerras, de todas as misérias deste mundo estaria agindo uma mão providencial que, sem se dar à percepção imediata, ordena o real em direção ao Todo, ao Universal, à Síntese Suprema, destino glorioso reservado à Humanidade guiada pela astúcia da razão de um Deus Dialético.

O  ideal de realização universal de Hegel na história foi apreendido por Karl Marx sob o crivo das inversões materialistas bem conhecidas de todos nós. Em vez de traçar os caminhos do Espírito, cabia a Karl Marx interpretar o movimento material do mundo via a nova ciência que ele visava a estabelecer, o materialismo dialético. Posicionavam-se, dentro de sua visão, duas classes antagônicas em disputa perene, a dos expropriadores e a dos expropriados.

O advento do modo comunista de produção, a ser implantado via revolução da última categoria histórica de expropriados, a dos proletários modernos, figurava como sucedâneo terreno e terrestre à realização do Espírito Hegeliano. Ver-se-ia estabelecido, por fim, um novo Eliseu, este humano, demasiadamente humano.

O Universal se faria tangível no instante em que as classes se dirimissem em uma nova Humanidade, a Humanidade livre dos grilhões que a dividia atemporalmente entre dominantes e dominados. Importa aqui notar que tanto idealística, quanto materialisticamente, com o perdão da excessiva adverbialização, o alvo não deixava de se referir a alguma espécie de elemento Universal, em outras palavras, de uma meta, física ou não, representada por um elo de união, de uma identidade simultânea entre o concreto e o abstrato, o conceito e a coisa. Nações, cores, raças, gêneros, todas essas divisões desapareceriam de vista logo quando o homem se livrasse daquilo que não o permitia ser de fato  Homem. Eis no consistia a “verdadeira” libertação.

Século XX.

“Muro de Berlim”>>> “Reunificação das duas Alemanhas”>>> “Globalização”>>>”Fim da História”.

Século XXI

Segundo os próceres da nova idéia de liberdade, aí está tudo de importante que ocorreu no século XX. Um desavisado poderia pensar que com a “globalização” e a “reunificação dos dois mundos”, o comunista e o “natural”, teríamos atingido o objetivo final da proclamada Universalização. Não?

Jamais se gozou e se buscou tanto o gozo nas profundas entranhas e reentrâncias da propalada “diferença”. Todos se consideram diferentes e desejam mais do que tudo a diferença. Os próprios “dinossauros” universalistas hoje nada mais são do que uns “diferenteões”. Afirmar o Universal é ser diferente. Ser diferente é universal.

Mulher, Negro, Brasileiro, Etíope, Emo, Nikófilo, Filósofo, Protetor de Animal, Fotógrafo, Escritor, Advogado, Ecoativista, Comunista, Professor, Rapper, Tecnólogo da Informação, Marqueteiro, Prostituta, Intelectual, Frankfurtiano, Tarado, Tucano, Racionalista Cristão, Mano, Neonazista, Cinéfilo, Chavista, Consumidor Consciente, Blogueiro, Guitarrista, Foragido de Galés, Amolador de Facas, Boy, Executivo, Malhado, Amante, Bourdiesiano, Carregador de carrinhos de supermercado, Proxeneta, Esteticista, Esteta, Trabalhador CLT, Pedófobo, Militar, Estudante, Baladeiro, Psicanalista, Telespectador de seriados norte-americanos cool, Pós-Graduando em Sociologia e outros infinitos diferenciais identitários são incessantemente louvados, conquistados, rechaçados e, na medida do possível para cada um, intercambiados pelos seus ocupantes.

É aí que reside a universalidade hodierna: na impossibilidade de qualquer síntese universal, no reconhecimento de que a sociedade e suas posições estão dadas, cabendo a nós, tão-somente, aferrarmo-nos a algumas delas e a nos resignarmos à combinação que nos represente melhor. Tem que ser a melhor. Senão, o que seremos?

Somos o que queremos/podemos ser, e não queremos nada mais do que isso: ser o que está aí, ser o dado, ser o concreto-real. Que o século XIX enterre consigo seus sonhos, ideais, utopias e devires “autoritários”! Somos, afinal livres! Livres em nossas diferenças! Universais em nossos isolamentos! Ensimesmados em busca de nós mesmos no que o Grande Outro, a sociedade, nos dispõe!

A liberdade reside na escolha que podemos fazer entre labels: basta deixarmos fluir a afinidade entre eles e desfrutarmos do resultado: o nosso Ser moderno, agregado de literato, pobretão, mulherengo, viajante, ateu e cínico, por exemplo, ou de trabalhador, responsável, corinthiano, evangélico, administrador e BBBlófilo.

As possibilidades estão aí: basta sabermos como agarrá-las: espalhemos, semeemos, espedacemos, agitemos, abalemos, difamemos, retardemos, dilatemos, difiramos, afinal!

Difiro, logo existo.

Existe?

Embotado

Posted in Sem categoria on 31 de agosto de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

A brutalidade nossa de cada dia resulta na paralisação parcial do sentimento e da ação: o embotamento.

Embotados somos, embotados ficamos, embotados seremos.

Ao ataque, à defesa, ao ataque, à defesa, à defesa, ao ataque.

Aos que insistem em dar vida ao espírito, há uma solução na medida certa: os remédios. Eles tornam exatos os movimentos e os pensamentos, tirando do olhar o pouco do desespero vívido ou da alegria desesperada que volta e meia irrompe pela gente.

Afinal, existe na natureza semelhança tão precisa como a que nivela a opacidade das retinas dos deglutidores de Fluoxetinas, Prozacs, crack ou maconha? Hoje em dia alguém é capaz de atingir o Nirvana prescindindo das abençoadas receitas – industrializadas ou caseiras – de equilíbrio?

Sejamos iguais em nossa diferença: sejamos embotados, cada um à sua maneira.

Há o que se embota por estar pleno de satisfação; o mundo não é mais capaz de lhe proporcionar o que ele quer, pois ele não sabe mais o que quer. Há o que se embota por desconhecer seus limites; desejou pouco, talvez um filho, uma família, um marido, um pouco de sucesso, um naco de beleza. Os teve, mas descobre que com o tempo, o mundo cada vez menos lhe diz respeito. Há o que se embota pela falta. Falta tudo, falta amor, falta pão, falta carinho. Pois tristeza demais, ou alegria de menos também embotam.

Atrativa e pegajosa, a situação de embotamento arrasta tudo e todos à não-reflexão. Falta pouco para se anular o pensar, presumida “qualidade” intrinsecamente humana. Demasiadamente humana.

Embotados de todo mundo, uni-vos! E deixemos que o furor frenético do Eu termine seu trabalho de embotamento dos seres mais unidos e isolados que a história jamais viu.

Ainda falta para nos embotarmos do embotamento.

Soterrados no concreto

Posted in Sem categoria on 18 de julho de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

Euge!

São Paulo cresce a olhos vistos!

De1982 a 2007, 6728 edifícios foram construídos na pujante capital. O que representa, em média, a exata ereção de 1,35627229 novo prédio por dia.

Que magnífico! Com orgulho anunciamos números que nos tornam melhores, mais ricos e felizes. O futuro é para cima.

Vivas aos infindáveis “lançamentos”!

Vivas aos majestosos “empreendimentos”!

Vivas aos arregimentados jovens periféricos de fim de semana, que com um entusiasmo invejável agitam bandeiras sem causa anunciando em frente às moradias vindouras – que nunca serão deles – o advento de mais um caixote fálico concretado na cidade!

Quanta beleza arquitetônica expressam as fachadas talhadas de varandas semi-circulares e cores discretas! Quanta alegria e aconchego suas grades reforçadas com fios eletrificados, câmeras de segurança e concertina nos transmitem!

O minimalismo que dá o tom do mundo de hoje chega a ser comovedor; necessitamos apenas de alguns cubos para sobreviver: um grande, o edifício cúbico, que comporta um cubo interno, o apartamento, que, por sua vez, guarda cubos de metros quadrados – os cômodos – que contêm a cúbica televisão. Sem contar o cúbico automóvel, nosso nós-outro.

Como bonecas russas, as coisas se encaixam perfeitamente. Mundo melhor não há nem nunca haverá.

Segurança, bem-estar, espaço-gourmet, churrasqueira, piscina, salão de musculação, de festas, suítes – muitas suítes – garagem privativa, guarda-volumes e muito mais. Quase sempre repletos daquele triste vazio modorrento típico dos condomínios burgueses… Mas que importa, já que paisagens paradisíacas repletas de área verde, espaço e céu aberto margeiam os condomínios… ainda que seja no mundo das idéias, ou nos desenhos das plantas distribuídas nos faróis de sábado.

Sim, o distante sonho de cidade arejada e arborizada é jogado em nossa cara a cada novo panfleto que comemora e anuncia o cravejamento de mais uma torre na terra bandeirante. Afinal, nenhum dos compradores reclama da ausência das bucólicas paisagens ao dar de cara com seu vizinho de prédio coçando o pé a menos de seis metros de sua lúgubre varanda que jamais vê a luz do sol… E quem precisa de sol, do Sol, de luz, de verde, de ar e de todas essas ninharias, a não ser passarinhos e os eternos insatisfeitos?

Brasil, o país do futuro, um país de todos.

Como tudo na vida, o progresso cobra seu preço, ainda que mínimo, comparado com as benesses que proporciona.

O vovô que morava na casinha com jardim do bairro meio periférico  teve que se mudar. Velhinho e simpático, seu lar foi comprado pelo empreendedor. Assim como os de seus vizinhos. O quarteirão se modifica, residências devem vir abaixo; é mais um símbolo de glória e conquista que se anuncia.

Vivas eternos, e glória aos empresários do ramo da construção de São Paulo, do Brasil e do mundo!

Hão de convir que ninguém contribui mais do que eles para o intumescimento da comunidade paulistana… Portadores do progresso, quantos empregos ofertam aos personagens queridos por todos os paulistanos natos, seus irmãos de obra, os nobres peões; quantas oportunidades esses simpáticos, abnegados e visionários senhores grisalhos nos trazem. Sem eles, nada seríamos…

Vivas aos bravos vereadores, prefeitos, governadores, presidentes, deputados estaduais, deputados federais, senadores e todos aqueles que merecem nossa gratidão eterna! Firmes e convictos, criam o ambiente perfeito para que nossas incorporações floresçam. São Paulo só se tornou o que é graças ao infatigável trabalho desenvolvido por eles em prol da população!

Em terra tão fértil que tudo dá, segundo nosso caro Policarpo Quaresma, até mesmo se nela jogarmos cimento nascem prédios.

É esta Verdade que os incorporadores paulistanos nos provam a cada dia, aliás, mais do que uma única vez por dia.

O Príncipe está nu

Posted in Sem categoria on 4 de julho de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

Apesar dos problemas de verossimilhança e da péssima atuação de alguns atores, o filme “O Príncipe” (2002), do cineasta Ugo Giorgetti, vomita com perfeição em nossa cara branca, meio-esquerdista e pequeno burguesa de paulistanos amedrontados, a loucura coletiva que nos acomete nesta cidade que, a cada dia que passa, vê suas luzes se apagarem – se é que já estiveram acesas…

O Brasil que deu certo amalgama-se aqui, no centro “expandido” da engalanada, luxuriosa e purpurinada megalópole andrajosa, fedentina e desdentada.

A cada naco de gente que tropeçamos nas calçadas pestilentas e quebradiças beirando o Minhocão corresponde um Porsche ou uma BMW pousados nos assépticos postos de gasolina da Rua Colômbia, nos Jardins.

Para além das aferições e relações sociológicas, porém, mendigos e automóveis irmanam-se mais do que se pode presumir: ambos são paródias de ready-mades, prontos a se tornar obras de arte, seja por meio das objetivas de objetivos fotógrafos da miséria, seja pelo olhar embasbacado dos bons pais de família que sabem apreciar a beleza de uma máquina.

Ao fracasso pessoal dos winners sociais, retratados na película como antigos esquerdistas que viriam a capitular à sedução do mercado e suas infinitas (im)possibilidades, equipara-se o apego desesperado a Jesus dos fracassados sociais, os “últimos” que se querem os primeiros – de preferência, já neste mundo.

O clientelismo do nordestino que toma conta dos automóveis em frente à ex-casa do silencioso e discreto pequeno burguês da Vila Madalena fugido a Paris revela mais do que ele se lembrava do Brasil. Sua pressa em se desvencilhar daquele íntimo desconhecido é proporcional ao ímpeto de deixar o país “que se apaga”, o “Brasil obscuro” para trás mais uma vez. E sem pestanejar, o afrancesado redescobre que os Trópicos não são para qualquer um.

De fato, os esquerdistas da década de 1960 – e não da de 1970, como erroneamente o filme dá a entender – que não fugiram do país, tiveram que fugir de si nesta cidade em que a efetiva sociabilidade subsiste tão-somente nas praças do centrão, em meio às fogueiras dos lumpens que insistem na opção da vida.

Opção esta que diz respeito aos mais “fortes”: a alma do sensível professor de história não suportou a falta de luz. Ou seria o exagero dela?

Tudo e todos fora do lugar?

Talvez tudo esteja no lugar em demasia.

Irremediável, estatística e estaticamente no lugar.

E, por fim, aos que ficam um recado.

Que nos apeguemos à única opção possível: a prática da caridade desinteressada. Indelevelmente distantes dos de baixo, sem estômago e condições objetivas para nos comprazermos com os de cima, resta-nos confraternizar com os necessitados de toda ordem doando o nosso valor-trabalho. Triste paródia do contato com o “povo” buscado pela outrora politizada classe-média que sonhava com a revolução.

Eis o país do futuro: o mundo se abrasileira com rapidez. Não há mais possibilidade de identificação que não seja o Corinthians, o Brasil, o Manchester, o Milan…

PS: O que se fez francês sente o grito das banlieus? Será que vai querer voltar quando a água bater na bunda também por lá?

Olhai para as aves do céu

Posted in Sem categoria on 9 de fevereiro de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

Olhai para as aves do céu

que não semeiam nem segam

nem fazem provimentos nos celeiros;

e, contudo, vosso Pai celestial as sustenta.

***

Comprei um desses receptáculos de alimento para beija-flor.

Todos os dias, enquanto trabalho, a varanda se enche não só de beija-flores, mas também de pássaros menores e maiores sedentos pela seiva que eu sempre lhes disponibilizo.

A Celia, assistindo ao espetáculo diário que os pássaros do concreto nos proporcionam teve uma inspirada interpretação da famosa parábola de Jesus, que tanto incomoda os protestantes e demais próceres do trabalho pelo trabalho.

Foi o seguinte:

O dia em que a humanidade for humanidade, todos poderemos ter a despreocupação dos pássaros para conosco, mas não para com os outros.

O forte egoísmo reinante que nos inquieta pelo pão-nosso de cada dia daria lugar à doce e constante vigilância para que o pão-deles de cada dia não falte.

Deles, importa dizer, seja de quem for. O outro virá antes de nós.

Nessa Utopia, haverá constantemente alguém pronto a abastecer o receptáculo de seiva a todos, fazendo o papel de Pai Celestial. Na verdade, todos quererão cumprir este divino papel.

Liberdade

Posted in Sem categoria on 3 de fevereiro de 2010 by Dmítri Cerboncini Fernandes

De tão artista, zombo da arte.

De tão cientista, zombo da ciência.

De tão amigo, zombo da amizade.

De tão religioso, zombo da religião.

De tanto filosofar, zombo da filosofia.

De tanto amar, zombo do amor.

De tanto odiar, zombo do ódio.

De tão livre, zombo da liberdade.

E assim por diante.

Confesso que começo a achar graça daqueles potros raivosos que se levam a sério em qualquer um dos domínios a que a sociedade os tenha relegado.

Precisam construir auto-justificativas que os enobreçam aos olhos dos demais e aos seus próprios olhos a todo instante.

A sua esferazinha de ação deve ser a melhor por decreto, pois é lá que investiram o sentidozinho opaco e cambiante de suas vidas.

A mais pura, a mais elevada, o posto de onde se vê e se vive com maior lucidez, empatia e altivez o resto…

Pior é quando o frenesi distintivo toma o partido da “liberdade”…

Quem não partilha do partido é acusado de ressentido, fracassado, religioso, cientista, medíocre, prisioneiro etc…

Os condicionantes de todos e de tudo devem ser revelados, com a exceção do meu, é óbvio, sob pena de a farsa em que “decidi” viver me seja jogada na cara.

Lutam quixotescamente contra o tal “todo”.

O “todo”, no entanto, é implacável até mesmo com o potros mais livres…

Aproveitemos o que a condição burguesa nos concedeu, arautos da liberdade!

Zombemos da própria zombaria sem termos de nos entrincheirar em um dos conventículos disponíveis para tanto…

Mas não!

Aí a liberdade é demasiada! Pois corda é preciso quando se quer enforcar-se. Mesmo que seja na liberdade.

Ora, acusemos os outros! Isto sim é fácil de se fazer. Assim como o faço agora.